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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

ARTISTAS: CONSUMIDORES E CIDADÃOS


O que faz o artista hoje para se manter vivo, independente, alerta, cidadão?

Como lidar com o avanço do capitalismo, a consequente ocupação do espaço imaginário por conglomerados globais, o Estado diminuto, as identidades fragmentadas e as ideologias desgastadas?
Tomo emprestado a frase de Nestor Garcia Canclini para propor uma discussão a respeito da importância da cultura do consumo, numa sociedade em que o status de cidadão só é conferido somente a quem exerce o poder da compra.

Por esse motivo sempre fui defensor de programas como bolsa-família, mesmo sabendo de suas distorções e da dificuldade do Estado em propor algo que extrapole e avance na relação paternalista com quem vive à margem da economia. Essa situação fica mais delicada e frágil em época eleitoral.

O fomento aos processos culturais descentralizados, contemporâneos ou tradicionais, legitimados pelo diálogo entre local e global, pela cultura da convivência e pela economia solidária, é um dos caminhos mais atraentes e interessantes pensados pelo governo Lula, pois oferece possibilidades reais de conquista de cidadania, em territórios tomados por sobreposições de mandatos ilegítimos, conferidos a coronéis, oligarcas, mídias e corporações.

O governo vem encontrando brechas na relação entre a base da pirâmide e esses poderes estabelecidos, fazendo-se presente a ponto de alterar a configuração da sociedade. Uma oportunidade de refazer a própria noção de Estado. O problema é que governo forte demais enfraquece o Estado.

Corremos o risco de reforçar uma relação de dependência com o governo. E nós precisamos de relações institucionais, de serviços efetivos, de planejamento a longo prazo, de continuidade dos processos, de transparência, impessoalidade.
A universalização dos serviços culturais é algo urgente no Brasil. Com um sistema educacional anacrônico e falido, jamais conseguiremos dar conta de formar, informar e preparar o povo brasileiro para os desafios do novo milênio. Precisamos investir em infra-estrutura cultural. Dar acesso ao conhecimento e estimular a expressão cultural são condições para a conquista da cidadania.

Precisamos dar voz, luz e espaço de ocupação para esses atores sociais. E outros que lutam e sacrificam suas vidas para abrir brechas tanto no Estado quanto no mercado, em pleno processo de ebulição.

O crescimento do mercado cultural brasileiro está intimamente ligado às novas conquistas sociais, com as possibilidades de circulação de mensagens e imagens. Fruto da fúria e da garra de milhares de empreendedores, vimos florescer a reinvenção da arte em sua relação com o Estado e com o mercado. O custo disso para a produção cultural brasileiro não foi e não pequeno.

Na contramão disso tudo, o governo enxerga o mercado cultural como ameaça. Em plena crise financeira, estende a mão a banqueiros, à indústria automobilística e ao topo da pirâmide econômico-social. Ao setor cultural reserva a promessa de um pacote anticrise jamais cumprido, o aumento de impostos e uma campanha publicitária milionária em orçamento, porém pobre em presença de espírito e compromisso com a verdade.

A Lei Rouanet tem distorções, assim como o bolsa-família ou qualquer outra lei destinada a resolver problemas mais amplos e complexos. Não só sabemos disso, como denunciamos insistentemente o descaso do Estado em relação a ela, desde outros carnavais (e governos).
É um dispositivo complicado, pois coloca o artista e o produtor de cultura no colo daquele que, em tese, deveria contrapor. Na prática, no entanto, tem se mostrado muito eficiente no diálogo entre os diferentes mundos, sendo responsável pela retomada do senso de importância e necessidade de políticas públicas para a cultura.

Posso citar milhares de iniciativas que traduzem esse espírito, inspirando e qualificando o Estado em suas ações. Oficinas de arte que reinventaram a relação entre educação e arte, influenciando escolas e políticas públicas; cinemas itinerantes que ofereceram oportunidade e acesso à cinematográfica nacional e independente; espaços culturais alternativos; exposições paradigmáticas; circulação de espetáculos; mapeamentos de artistas e expressões culturais; pesquisas e um sem número de atividades que tomaram o espaço de um Estado ainda omisso em relação às suas obrigações constitucionais em relação à cultura.

É um espaço ocupado pela sociedade, por via do mercado – e com renúncia do Estado. Mas, antes de qualquer coisa, é um espaço da sociedade. Ele concorre com o Estado? Somente uma alma pequena poderia acreditar que sim. Ele dialoga, complementa, contribui, confronta, contrapõe, o que é fundamental num estado democrático de direito.
Concorre com o governo? Com certeza. Não queremos tirar o mérito e a importância dos governos, mas eles não nos servem de nada, se não contribuem para o fortalecimento da sociedade e suas iniciativas. O espaço público construído a duro sacrifício não pode ser ameaçado por uma aventura retórica e oportunista.

Estado forte se constitui a partir de uma sociedade fortalecida, livre, encorajada. Esse encorajamento, no campo da cultura, vem das forças empreendedoras desenvolvidas a partir de um terreno árido e difícil, com base no abandono e na renúncia do Estado.

Empreendedorismo é mais do algo natural ao artista. É necessidade. Ele precisa acreditar no que faz e desenvolver recursos internos para construir, levantar sua obra, fazer-se enxergar. E o fez de maneira heróica, resistindo a todas as forças contrárias do próprio mercado. E agora do governo, criando burocracias desnecessárias, regulamentos estapafúrdios e uma campanha de segregação que considero criminosa.

Se houver qualquer reformulação na Lei Rouanet ela deve fortalecer o empreendedor cultural. O mecanismo nasceu com essa vocação e assim deve ampliar sua capacidade, para atender a uma força emergente e avassaladora, vinda do centro, da periferia e dos Brasil profundo.
O Procultura faz o oposto disso. Coloca o produtor e o gestor cultural no limbo. Não acredita em cadeias econômicas ampliadas e num setor fortalecido, justamente naquela fatia da livre iniciativa, entre o fomento público e a indústria do entretenimento, essas sim fortalecidas com o projeto.

Sem esta fatia não haverá novos agentes no mercado. Os que já existem serão eliminados. Artistas estarão novamente nas mãos do governo e sua visão específica e às vezes ideologizada de cultura; e a grande indústria multinacional. E todo esforço será em vão.

Texto: Leonardo Brant
Pesquisador de políticas culturais. Autor do livro "O Poder da Cultura" e diretor do webdocumentário Ctrl-V
www.brant.com.br

Fonte: site www.culturaemercado.com.br

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